Postado em: 11/02/10 às 19:31:35 por: James
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Estribados na narração evangelica que, segundo o proprio Renan, se impõe ao nosso respeito pela sua authenticidade historica, procuramos expôr, com toda a fidelidade, tudo quanto affecta, substancialmente, o famoso Processo em que fôra envolvido, e por que fôra condemnado, Jesus Christo.
Por essa simples narração, parece evidente, a todo o espirito sereno e imparcial, que Jesus fôra preso, julgado e condemnado com violação flagrante da lei e da justiça.
O Processo, pois, fôra nulo de pleno direito e por conseguinte a pena capital comminada e executada contra Jesus, não fora outra cousa sinão um verdadeiro assassinato legal.
Pelo que nos consta, tem sido esta, durante 19 seculos, a opinião daquelles que têm encarado i parcialmente a horrenda e inolvidavel tragedia que teve o seu cruento epilogo no topo do Calvario. Não podia,portanto, deixar de causar profunda e amarga impressão o apparecimento da obra Vida e Doutrina de Jesus Christo de J. Salvador, onde, pela primeira vez, se tem tentado justificar o iniquo procedimento do Synhedrio relativamente ao Processo de Jesus Christo, e defender sua suposta legalidade.
A obra de J. Salvador cahiu, felizmente, no olvido, mas por desgraça veio substituil-a uma outra que encontrou, e encontra ainda, acolhimento enthusiasta, especialmente entre o publico de curta leitura e de senso critico mui limitado. Alludimos á Vida de Jesus de E. Renan. (1)
E é justamente por isso, é por sabermos que é mais lida e conhecida, que porfiamos em chamar a attenção do leitor sobre as insinuações, sophismas, falsidades de que lançou mão Renan notocante especialmente ao Processo de Christo, soccorrendo-se, para isso, embora não o declare, da obra do Salvador. (2)
Antes disso, porém, recordemos, succintamente, as phases principaes do Processo.
Jesus é preso na noite de quinta-feira, 14 de Nisan, ou 6 de abril. Nessa mesma noite de quinta para sexta feira, é submettido a dois interrogatorios: o primeiro teve logar cerca de meia noite na presença de Annáz; o segundo, mais ou menos ás 2 horas da madrugada de sexta, nos aposentos de Caiphás, e perante este ultimo. Naquelle, nada se descobriu em desabono de Christo; neste, compareceram testemunhas que accusaram Jesus de crime contra a existencia do Templo, affirmando que Christo dissera: "Eu posso destruir o Templo de Deus e reedifical-o em tres dias". Mesmo assim, o depoimento era contradictorio. O proprio Caiphás julgou-o insufficiente; este procurou, pois, outro rumo e perguntou a Jesus si era realmente o Christo filho de Deus. E Jesus respondeu: Eu o sou.
Caiphás não precisou de mais nada. Considerar-se Filho deDeus era crime de pena capital, e no mesmo instante foi julgado por alguns membros do Synhedrio e condemnado á morte.
Na mesma sexta feira, desde as cinco horas até cerca das onze da manhã, Christo foi submettido a quatro interrogatorios, a saber: O primeiro, perante o Synhedrio reunido, ao completo, ao amanhecer daquelle dia. O segundo, perante Pilatos, mais ou menos ás 7 horas da manhã. O terceiro, perante Herodes, das oito para as nove. O quarto, de novo perante Pilatos, das dez em diante. No 1º. , o Synhedrio confirmou a sentença de morte, pronunciada por alguns membros ás duas horas da madrugada. No 2º. , Pilatos o achou innocente. No 3º Herodes não descobriu crime nenhum. No 4º, Pilatos confirmou a sua opinião anterior sobre a innocencia de Jesus, amedrontando, porém, por uma ameaça popular, condemnou-o á morte.
Pois bem, Renan, na sua obra citada, começou a mystificar, sophismar, embrulhar e alterar os factos, desde o primeiro interrogatorio. Cedamos-lhe a palavra: " Começou o interrogatorio, diz Renan; compareceram perante o tribunal muitas testemunhas preparadas de antemao, segundo o processo inquisitorial exposto no Talmud".
Este topico é nebuloso. Antes de tudo, que testemunhas são estas? Qual é o seu valor moral? Renan muito intencionalmente nada nos diz, a este respeito; apenas nos conta que ahi estavam preparadas de accordo com o processo inquisitorial. Mas o processo inquisitorial não admittia testemunhas falsas. Taes, entretanto, eram as testemunhas em questão; o Evangelho fala claro: "E o Príncipe dos Sacerdotes e todo o Conselho buscaram algum testemunho falso contra Jesus para o poderem matar, e não achavam, ainda que muitas falsas testemunhas se apresentassem. Vieram finalmente duas testemunhas - duo falsi testes - para depor, etc, etc" (Math. XXVI, 59,60, 61) contra Jesus "depunham o falso... e o depoimento das testemunhas era contradictorio; falsum testimonium ferebant adversus eum... t non erat conveniens testimonium illorum". (Marc. XIV, 57,59)
Em que estavam, pois, de accordo, as testemunhas, com o processo inquisitorial daquelle tempo?
Si Renan entende dizer que o comparecimento e o interrogatorio eram exigidos pelo processo inquisitorial, nos diz uma banalidade; e si entende insinuar, e aqui é em que está o ardil de Renan, que testemunhas e depoimentos estavam de conformidade com as disposições legaes contidas no processo inquisitorial, é falsissimo, porque não era admittido o depoimento de falsas testemunhas, como não era admitido o depoimento contradictorio.
Continuemos. "As palavras fataes, diz Renan, que Jesus tinha realmente pronunciado - Eu destruirei o templo de Deus e o reedificarei em três - foram citadas por duas testemunhas".
As duas testemunhas a que alude o philosopho francez, são as ates duas falsas testemunhas duo falsi testes, que citamos acima e de quem fala S. Matheus.
Renan, que tanto gosta de apontar a origem evangelica de suas citações, devia indicar tambem esta, e especialmente esta, que é de uma gravidade excepcional. Mas, está claro, não lhe convinha, e não lhe convinha pela simples razão, que em todos os quatro Evangelhos não ha uma unica palavra que alluda este facto. Jesus nunca disse tal, sabe disso Renan, mas a verdade ás vezes prejudica.
As fataes palavras foram pronunciadas, não por Crhisto, mas sim pelas testemunhas que desvirtuaram uma expressão proferida por Jesus, desde o inicio de sua vida publica, e , precisamente, no dia em que expulsára os profanadores do templo.
Jesus expulsára-os exclamando: "Nolite facere domum Patris mei, domum negotiationis" (Joan 11,16) , isto é: não façaes da casa de meu Pae, uma casa de traficancia! De meu Pae? pensaram os judeus escorraçados. Quaes são, perguntaram-lhe, as tuas credenciaes, que signal nos apresentas, para que acreditemos que tu és o Filho de Deus? Foi então que Jesus respondeu: "Destrui este templo, e em tres dias o restabelecerei".
Jesus, observa a este proposito S. João, serviu-se, aqui, de uma linguagem figurada, entendendo, por templo , o proprio corpo; como si dissesse: matai-me, e depois de morto resuscitarei; a minha resurreição será o signal.
As testemunhas, pois, em presença de Caiphás, quizeram alludir a esta ciscumstancia, mas desvirtuaram, por completo, as palavras de Jesus, dando-lhes um sentido muito diferente.
E, Renan, sabe perfeitamente disso. Sabe quanta perfídia ha no fundo dessa interpolação voluntaria das duas falsas tstemunhas. Podia, pois, narrar os factos adstringindo-se, rigorosamente, é verdade historica, mas, repetimos, isso não convinha ao filho de Voltaire. Si assim fôra, não teria podido, aqui como no resto, forgicar uma Vida de Jesus ad usum Renan, isto é, um romance onde a phantasia não raro supre a realidade, onde o meigo nazareno devia figurar com um caracter, mixto de grandezas e baixezas, de heroismos e covardias, um Jesus, enfim, em cujos traços physionomicos havia de prevalecer o cunho, não da sinceridade e lealdade dos evangelistas coévos, mas da doblez manhosa e astuta do racionalista do seculo XIX.
Mas vamos adiante.
"Segundo o judaísmo orthodoxo, assim se exprime Renan, elle era um verdadeiro blasphemador, um destruidor do culto estabelecido; ora a lei pune esses crimes com a morte" .
Christo, pois, na opinião do romancista francez, teria praticado um duplo crime: um por ter blasphemado do Templo; outro por se ter declarado Filho de Deus. E em apoio do seu asserto cita o dispositivo legal consignado no Levitico e no Deuteronomio.
Mas que diz a lei? Eil-o: "Leva o blasphemador fóra do acampamento, e os que o ouviram blasfemar, ponham-lhe as mãos sobre a cabeça e depois todo o povo o apedreje... E quem tiver blasphemado o nome do Senhor, seja condemnado á morte" . É do Levitico. (Levit. XXIV, 14,16)
Não citamos, ipsis verbis, o dispositivo do Deuteronomio porque, abrangendo doze versiculos, nos tomaria muito espaço; está, porém, condensado nisto: - Deus comndena á morte o falso propheta e quem allicia o povo para determinal-o a prestar culto aos falsos deuses. (Deut. XIII, 1 e seg).
Pois bem, Christo cahiria na violação do dispositivo legal contido no Levitico? Era cabivel a accusação feita contra Christo, isto é, ter elle blasphemado do Templo, e portanto de Deus? Um criterio seguro sobre a culpabilidade de Jesus só podia descansar sobre o depoimento de testemunhas dignas de fé. Mas as testemunhas citadas para isso eram falsas, dil-o categoricamente o Evangelho: duo falsi testes (Math. XXVI, 60) , cujo depoimento era contradictorio: "Et non erat conveniens testimonium illorum". (Marc. XIV, 59.). Por lei um tal depoimento e da parte de taes testemunhas, não só era desprovido de valor , como determinava penas contra quem o fizesse. A lei era clara a este respeito: "Non loqueris contra proximum tuum falsum testimonium": Não levantarás falso testemunho contra o teu proximo (Exod. XX, 16). "Non factes calumniam proximo tuo: Não levantarás calumnia contra o teu proximo. (Levit. XIX, 13). E si depois de um exame escrupulosissimo, diligentissime perscrutantes, os juizes chegassem a possuir provas de que a testemunha levantára o falso testemunho contra o réu, deviam condemnar a falsa testemunha á lei do talião, isto é, á mesma pena a que teria sido condemnado o imputado, uma vez comprovado o crime: "Reddent et sicut fratri suo facere cogitavit" (Deut. XIX, 16 e seg).
Pois bem , contrariamente a quanto determinava a lei, as testemunhas foram deixadas em paz. Apesar deste menosprezo legal, o seu depoimento não foi tomado em consideração, em que pese a Renan, que parece ligar-lhe toda a importancia. E a prova disto está no facto que o Presidente do Conselho, não achando nelle, um ponto de apoio, uma base sufficiente para condemnação, recorrera a outro expediente, interpellando Jesus si era, na verdade, o Christo, Filho de Deus. A resposta affirmativa de Jesus era justamente o crime que se procurava, pois, segundo a orthodoxia judaica, constituia delicto digno de morte. Foi, portanto, condemnado pelo Synhedrio, não porque tivesse blasphemado do Templo, mas, e unicamente, porque se declarára Filho de Deus. Esta declaração tornára-se, de repente, o alvo dos ataques, o nucleo para o qual havia de gravitar toda a questão, a arma da qual haviam de se servir os seus inimigos para votal-o á morte. E foi, com effeito, por isso, repetimos, que foi condemnado.
O que não significa, aliás, que a condemnação fosse legal; pelo contrario. Porque é verdade que as passagens do Levitico e Deuteronomio, citadas por Renan, condemnam á morte a blasphemia, o suborno, o falso propheta, mas falta justamente provar que o Christo incorrera nestes crimes.
Era blasphemador, porque se declarara Filho de Deus? Era falso propheta? Pretendera levar o povo á adoração de um Deus que não fosse o Deus de Abraão, Isac e Jacob?
A Assembléa era obrigada certificar-se, e por isso estudar desapaixonadamente e maduramente a questão. Não podia, por ventura, ser realmente, Christo, aquelle msmo, de quem, havia seculos, os Prophetas vaticinaram a vinda? Os signaes característicos que lhe definiam a prsonalidade, encontravam-se, na verdade, na sua pessôa? Eram perguntas que deviam ter sido feitas e deveriam ter motivado serias e demoradas reflexões.
Que haviam dito, de facto, os Prophetas a respeito de Crhisto vindouro? Que teria nascido de uma Virgem (Isaias VII,14), na Cidade de Belém (Micheias V, 2), precedido por um Precursor cuja voz se fazia ouvir no deserto (Isaias XL, 3). Que faria justiça ao pobre, e sua lingua seria espada de dois gumes contra a prepotencia dos impios (Isaias XI, 4). Que estabeleceria, em vz dos velhos, um Sacrificio novo e grande, consagrado em todo o universo (Malachias 1,11). Que, montado sobre uma jumenta, entraria triumphante em Jerusalem (Zacharias IX, 9). Que teria sido vendido por trinta dinheiros (Zacharias XI,12). Que lhe teriam arrancado a barba e teria sido esbofeteado, cuspido, flagellado (Isaias L, 6). Que se teria tornado o opprobrio dos homens, a abjecção da plebe, objecto de zombaria e escarneo (Psalmos XXI, 6-7). Que seria desprezado como o ultimo dos homens, que se tornaria o homem das dôres, ferido, humilhado, supportando tudo, como um cordeiro, sem emitir um lamento (Isaias LXIII, 3 e seg) . Que na hora do perigo teria sido abandonado pelos seus discipulos (Zacharias XIII, 7), por um destes trahido. (Psal. LIV, 13-14).
Todos estes signaes encontravam-se em Christo e constituiam os traços mais firmes e typicos de sua physionomia moral. Havia seculos os olhares dos Patriarchas e dos Prophetas estavam convergidos para Elle; a cada passo era invocado, deseJado, suspirado; os ritos, as cerimonias, os symbolos, não eram sinão o Prefacio de uma obra colosal, cujo protagonista havia de ser o Christo-Redemptor.
Como, pois, não conhecer á sombra das figuras, ao retrato dos Prophetas?
Ao menos houvesse uma attenuante em favor do Synhedrio, allegando-se, por exemplo, a ignorancia das Sagradas Escripturas. Mas como admitir isso nos membros de um Supremo Tribunal? E ainda que, por cumulo de condescendencia, se queira, em parte, admittir uma tal anomalia, é preciso não se esquecer que um terço do conselho era formado de Escribas, isto é, de Doutores da Lei, quer dizer, de technicos e profissionaes.
Estes, sem dúvida, haviam de conhecer as passagens da Sagrada Escriptura que se referiam á pessoa de Christo, e , de outra parte, o Jesus coevonão lhes podia ser estranho. De facto, cousas extraordinarias deram-se em Belém, na época de seu nascimento. Mal attingira a edade de doze annos, fôra visto na Synagoga entr os Doutores da Lei, assombrando-os com o seu saber. O Portento das bôdas de Chanaan, desde o inicio de sua vida publica, abrira-lhe, de par em par, as portas da celebridade. Os prodigios que, durante tres annos, operara na presença de innumeras tstemunhas, levaram seu nome tão alto que, desde as praias da Idumea até as rochas do Antilibano, desde o cabo do Carmelo até ás nascentes do Jabboé, não havia quem o conhecesse.
Assistia, pois, a estes membros do Comselho, o estricto dever, antes de se abalançarem a uma sentença condemnatoria de tanta gravidade, de consultar os Livros Sagrados, estabelecer parallelos entre o Christo vaticinado e o Christo atual, fazer confrontos, aproximar o retrato ao original contestado, e verificar se havia isomorphia nos traços, semelhança nos desenhos, igualdade nas proporções. Era isso o que incumbia a Juizes serios e imparciaes, dispostos a se manterem nas elevadas e serenas regiões da justiça.
Mas nada disso succedera. Aggrediram-n'o, alta noite,como um ladrão preso em flagrante, sem mesmo saber de qual crime haviam de accusal-o; e sem julgamento, sem provas, sem defesa, fôra da hora legal, precipitadamente, o condemnaram á pena capital.
E o Sr. Renan, com uma sem cerimonia que assombra, nos vem declarar que o Processo fora perfeitamente legal,que estava de accôrdo com as regras juridicas da época, de plena conformidade com as normas processuaes entre os hebreus!
E nos cita até a lei violada por Jesus, que serviu de base ao processo e que justifica plenamente a attitude do Synhedrio. E essa lei, segundo elle, é justamente a que se acha consignada no Cap XXIV do Levitico e no XIII do Deuteronomio. Resta apenas conhecer como é que Renan sabe que Christo fôra condemnado precisamente por ter violado a lei citada por elle.
Porque é verdade que o Synhedrio e o povo reclamaram a morte de Jesus em nome da lei, mas é também verdade que, nem o Synhedrio, nem o povo, nem pessôa alguma, nunca citou, dessa famosa lei, uma única palavra, de sorte que, até hoje, depois de vinte séculos, não sabemos em virtude de que lei, afinal, Jesus foi condemnado.
Renan não se incommoda por tão pouco, e sem mais nem menos, aponta a Lei, cita os Capitulos e exhuma os versiculos. Privilegio exclusivo do poeta e do romancista!
Notas de rodapé *Para voltar ao texto, clique em um dos tópicos abaixo.
(1) A Vida de Jesus de Renan foi publicada, a primeira vez, em 1863, precisamente 21 annos depois da Vida de Jesus de Strauss. Desde esse tempo tivemos, salvo engano, 18 edições.
(2) Renan no Prefacio de sua Vida de Jesus declina o nome de diversos autores que lhe valeram; não cita, porém, o nome de J. Salvador, de quem se serviu a respeito do processo de Jesus. Ver, a este proposito, B. Labanca: Jesí Cristo. C.II, pag. 20.