Postado em: 30/10/13 às 20:37:12 por: James
Categoria: Destaque
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O falso conflito entre ciência e fé foi incentivado recentemente, como sabemos, pelo chamado “novo ateísmo”. O argumento de que, nos Estados Unidos, os cristãos tentaram fazer do criacionismo uma teoria científica equiparável ao evolucionismo, e que seria ensinado nas escolas, serviu de pretexto aos negacionistas (ateus beligerantes) para apontar os cristãos como ignorantes, intransigentes e incompatíveis com o conhecimento que temos hoje graças à ciência.
A chave do conflito parece encontrar-se na aparente contradição entre o texto bíblico (em particular, o Antigo Testamento) e o estado atual das ciências. Se interpretarmos literalmente o texto sagrado, sem dúvida alguma haverá uma distância intransponível entre o que ele nos diz e o que sabemos pela ciência.
No entanto, qualquer católico com alguma formação doutrinal sabe que a Bíblia não pode ser interpretada no sentido literal. O literalismo bíblico é alheio ao catolicismo; é consequência da reforma protestante do século XVI. Não é de se estranhar, então, que tanto os criacionistas como os impulsores do novo ateísmo sejam anglófonos, pertencentes ao âmbito cultural protestante.
A nós, católicos, o conflito ciência-fé (que, na realidade, é uma batalha criacionismo-ateísmo) chega como rebote, ainda que a preponderância bibliográfica e audiovisual norte-americana e a confusão entre criacionistas e “todos os cristãos” tenha nos colocado em uma guerra que, na verdade, não tem a ver conosco.
Ainda existem aqueles que pensam (levados pela ignorância, como Dawkins, Dennet ou Harris) que a visão católica em relação aos textos bíblicos é uma impostura. Que, na realidade, os católicos são mais habilidosos que certos protestantes e que reagimos a tempo, com tal de que o fogo não incendiasse toda a casa. Dessa maneira, acreditam que o catolicismo deixou de ser literalista com a Bíblia quando – e só a partir disso – se demonstrou pela ciência que a leitura literal é insustentável.
Mas a leitura literal dos textos bíblicos nunca pertenceu ao catolicismo. Não é que há 100 ou 200 anos os católicos começaram a buscar formas de sustentar sua fé e torná-la compatível com os conhecimentos que as ciências iam proporcionando. Não. Desde o começo, a Igreja nos ensina que a Bíblia tem especialmente um significado alegórico, que deve ser interpretado: Deus fala ao ser humano, mas ao ser humano de todas as épocas.
Orígenes (século III) chegou a dizer que era imbecilidade, por exemplo, acreditar que, quando o Gênesis diz que Deus criou o mundo em seis “dias”, deveríamos interpretar esta palavra segundo seu uso habitual (ou seja, um lapso de tempo composto por 24 horas). Orígenes [1], Ambrósio de Milão [2], Basílio o Grande [3], Agostinho de Hipona [4], Bom-Aventura, Tomás de Aquino [5] são notáveis exemplos do que estamos dizendo. Por outro lado, os católicos dispõem, desde Jerônimo, uma longa tradição de trabalho exegético.
Isso tampouco significa que a Bíblia não contenha, logicamente, passagens de veracidade histórica. a Arqueologia progrediu muito neste sentido, corroborando em muitas delas. E inclusive milagres, como o da divisão das águas, narrada no Êxodo, encontram apoio científico hoje. Basta ler os trabalho de Humphreys, da Universidade de Cambridge, ou do pesquisador atmosférico Carl Drews sobre o “golpe de vento” e a “onda perfuradora” para comprovar sua facticidade física (mantendo, portanto, o milagre na sincronização: é algo possível fisicamente, mas o extraordinário, milagroso, seria que houvesse ocorrido justamente quando era necessário).
A manipulação obsessiva e obscena do caso Galileu e da instituição da Inquisição por parte dos negacionistas quis fazer esquecer essa tradição inerente ao ser católico, com a intenção de deslegitimar nossas crenças e suscitar um conflito ciência-fé que, de forma alguma, é o abordado por este reduto de intelectuais ateus. Talvez tenham conseguido entre o grande público, com escassa formação doutrinal, impor a imagem derivada de tal manipulação. Daí que seja imprescindível um trabalho de pedagogia, encaminhado a colocar as coisas em seu exato lugar.
Dito tudo isso, tampouco é aceitável para o catolicismo que a ciência pretenda tornar-se a única fonte possível de conhecimento (dado que então estamos não diante da ciência em sentido estrito, mas diante do cientificismo). Em primeiro lugar, a ciência tem limites epistemológicos intransitáveis pelo ser humano.
Em segundo lugar, a compreensão total das perguntas últimas não corresponde à ciência, porque vai além do método científico.
Em terceiro lugar, a ciência não é neutra em relação aos processos de pesquisa. É financiada (e, portanto, dirigida) com propósitos alheios a ela (a empresa, a política, a ideologia), que determinam a direção dos programas de pesquisa e, portanto, suas conclusões. E reage defensivamente contra qualquer progresso cognitivo que contradiga o paradigma estabelecido, como demonstrou Kuhn.
Acrescentemos a estas objeções, por último, que a ciência tem dificuldades inerentes para estabelecer verdades. Uma coisa é a certeza e outra coisa a verdade. A verdade é, por definição, objetiva e invariável; mas, dado que a ciência é sempre suscetível de refutação, como demonstrou Karl Popper, seria ilógico depositar uma confiança cega em teorias que podem ser superadas mais à frente (e, de fato, na atualidade, sabemos que o paradigma da física atual, a mecânica quântica, será superado quando encontremos um meio de compatibilizá-la com a teoria da relatividade).
Neste mesmo sentido, cabe dizer que o “dado” científico é suscetível de interpretações que, em última instância, dependerão do observador, razão pela qual é impossível uma objetividade absoluta em suas conclusões, quando vão além de proporcionar precisamente isso: o dado puro e simples.
A ciência é um método de conhecimento altamente positivo. Permitiu-nos progredir na compreensão da realidade que nos cerca, e suas conquistas técnico-práticas, como a indústria, as telecomunicações e a saúde, são indiscutíveis. Mas a ciência não é o único meio de conhecimento possível. Ela demorou mais de dois mil anos, por exemplo, para demonstrar as teorias atomistas que, por meio da razão, foram abraçadas pelos filósofos pré-socráticos.
Entronizar a ciência como única fonte do saber é, sem dúvida, um fundamentalismo semelhante ao que sustenta a leitura literal dos textos bíblicos. É por isso que alguns autores denominaram o novo ateísmo como “ateísmoevangélico”.
1) Sobre el primero de los principios, IV.ii.5, IV.iii.4
(2) Hexameron L.iv.16
(3) Hexameron I.iv, I.viii, I.xi
(4) Contra Fausto el Maniqueo, 32.20; Confesiones, XIII.xv
(5) Summa Theologiae 1a, 1, 10.
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